CARDEAL SCHERER: O PAPA E A GUERRA QUE NÃO ACONTECEU
São Paulo,
- No dia 5 de dezembro, Argentina e Chile lembraram em Monte Aymond, uma passagem de fronteira entre os dois países, o 30º aniversário do início das negociações que levaram à solução da "questão austral", no Canal de Beagle. Durante séculos, os dois países disputavam a soberania sobre a região austral do continente sul-americano; uma arbitragem da Inglaterra havia sido inteiramente favorável ao Chile e a Argentina, naturalmente, rejeitou essa decisão e o problema continuou.As tensões subiram ao máximo durante os governos militares de A.Pinochet (Chile) e J. Videla (Argentina) no início de dezembro de 1978, chegando à iminência de uma guerra entre os dois países. "Os aviões já estavam prontos para decolar e iniciar os bombardeamentos", lembrou a Presidenta Cristina Kirchner durante a comemoração, falando também do drama vivido por ela, com tantas outras mães de Rio Gallegos (Argentina), que procuravam fugir da área de conflito com seus filhos assustados nos braços...Foi aí que, no dia 11 de dezembro de 1978, ainda nos primeiros meses de seu Pontificado, o papa João Paulo II insistiu pessoalmente com os 2 chefes de Estado em conflito que voltassem a examinar com serenidade a questão, oferecendo seus préstimos pessoais para mediar a busca de uma solução justa e estável para a convivência entre os dois povos irmãos. A condição era que não se entrasse em guerra, enquanto a mediação estivesse em curso. O pedido do papa foi aceito e, com os Acordos de Montevideu, de 8 de janeiro de 1979, os dois Estados recorreram formalmente à mediação do papa.João Paulo II encarregou o cardeal italiano Antonio Samoré para mediar a busca de um acordo para a questão austral; hábil e paciente negociador, ele trabalhou incansavelmente durante vários anos até que se chegou, finalmente, à plena superação de todas as divergências acerca da soberania territorial e marítima na área disputada. A tarefa exigiu todas as energias e custou a saúde ao Cardeal mediador, que veio a falecer antes que o Tratado de Paz e Amizade fosse assinado, diante do papa, na Capela Paulina (Vaticano), no dia 29 de novembro de 1984.O papa apostou na possibilidade da solução negociada para o conflito, mesmo estando bem consciente das graves dificuldades que os governantes enfrentam, muitas vezes, para assegurar aquilo que entendem serem questões de soberania nacional. Sobretudo quando entram em jogo nacionalismos exacerbados. Mas, como também já advertia Paulo VI, essas dificuldades não são vencidas com o recurso a métodos que ferem a dignidade do homem. A violência não gera a paz, mas abre novas feridas e produz mais violência.Na busca da solução para o litígio, o mediador papal seguiu as orientações da Doutrina Social da Igreja, na encíclica Pacem in terris", de João XXIII: as relações entre as comunidades políticas devem regular-se pelas mesmas normas da lei natural que regem a vida dos indivíduos: a verdade, a justiça, a solidariedade operante e a liberdade. Mas também adotou os critérios clássicos para a perfeição da justiça natural na solução do caso: a equidade (ex bono et aequo) e saída honrosa para as partes litigantes. Para resolver a questão de modo definitivo e completo era preciso ir além da mera justiça distributiva, dando a cada um o que é seu, e ter em vista a justiça comutativa, estabelecendo bases para o intercâmbio e a cooperação, além da integração física entre os dois países sul-americanos. A solução para a questão de Beagle pode, portanto, ser traduzida nesta fórmula: paz com justiça, paz com amizade, paz com desenvolvimento. Graças ao Tratado de Paz e Amizade, Argentina e Chile renunciaram a projetos estratégicos de expansão militar e territorial para alcançar dois bens maiores: a convivência pacífica e a construção conjunta de um projeto de cooperação econômica e de integração efetiva entre os dois países. Comprovaram, assim, que com a paz nada faz perder, mas tudo pode ser perdido com a guerra. O sucesso da mediação do papa João Paulo II também evidenciou como a Igreja Católica, com sua experiência e autoridade milenar, soube conduzir as conversações num clima de colaboração, canalizando os interesses das partes para a solução eficaz do conflito, a preservação da amizade entre os povos e o estímulo ao mútuo desenvolvimento.A Igreja recebeu de Jesus Cristo a missão de anunciar ao mundo a Boa Nova da paz para todos os povos; ela o faz, não apenas quando contribui com princípios e valores essenciais para a convivência justa, respeitosa e digna entre as pessoas e os povos, mas também quando pode colaborar efetivamente na superação de conflitos e no estabelecimento de relações construtivas entre as nações. Pena que essa voz em favor da justiça e da paz nem sempre é atendida. João Paulo II, já alquebrado e provado em sua saúde, esforçou-se ao máximo para evitar também a guerra no Iraque... Melhor, se o grito angustiado e já rouco do papa – parem com a guerra! - tivesse sido ouvido! No caso de Beagle, isso deu certo.No dia 5 de dezembro, em Monte Aymond, na qualidade de Enviado extraordinário do papa Bento XVI, tive a honra de participar da comemoração do 30° aniversário da Mediação Pontifícia e de entregar uma mensagem do Papa nas mãos das duas chefes de Estado; e pude testemunhar pessoalmente que os frutos da paz, exaltados pela presidenta Bachelet, vão crescendo na amizade e na progressiva colaboração e integração entre as duas nações. Tanto nas falas das duas chefes de Estado como nas vozes de pessoas do povo ouvi expressões de gratidão pela ação decisiva do Papa João Paulo II: "agradeça ao Papa, porque não deixou a guerra acontecer!"
(Cardeal Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo)
Fonte: RV
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